Monólogo da atriz Fernanda Viacava com direção de Malú Bazán conta a história da prostituta e ativista Gabriela Leite, principal referência na luta em defesa dos direitos das prostitutas no Brasil.
O espetáculo-solo surge a partir da identificação e das inquietações da atriz Fernanda Viacava com a figura de Gabriela Leite (1951-2013) e tem na sua concepção outras três mulheres que se encarregam de contar a obra e a trajetória desta importante personagem da vida real: Malú Bazán, na direção, Carolina Margoni, autora da peça, e Elaine Bortolanza, responsável pela pesquisa e curadoria.
A narrativa do monólogo é desenhada com a proposta de ultrapassar a barreira das ruas e do estigma, ao falar sobre a prostituição a partir da perspectiva do desejo e da liberdade sexual das mulheres, e tornar visível o legado de quase quatro décadas de luta.
O ponto de partida do texto é a memória viva de Gabriela e o protagonismo da história das mulheres da vida no Brasil e na América Latina. Conforme ressalta Elaine Bortolanza: “O feminismo abordado por prostitutas é recente e pouco visível. A prostituta sempre foi, e ainda é, objeto de representação nas artes, geralmente de um ponto de vista estereotipado, vitimizador ou romantizado. Neste sentido, porque não tornar visível e compartilhar esse legado de mais três décadas de luta, a partir de suas próprias vozes e narrativas? Tornar visível ao público esse arquivo vivo é uma maneira de levar, sobretudo para/com as mulheres, um encontro consigo mesmas, valorizando a importância de seus desejos, narrativas e lutas, como autoras e protagonistas de suas próprias histórias”.
A autora Carolina Margoni, falando sobre Gabriela mostra a força desta mulher que dá vida e corpo à personagem: “Gabriela pegou a palavra pelo chifre e atravessou fronteiras. A cada passo, foi conhecendo um país tomado por mulheres como ela. E foi aí que descobriu a própria voz. Uma prostituta destemida, inteligente e que fala! É ousadia demais. Para ela, não é profissional do sexo, é puta. Não é garota de programa, é puta. Não é prostituta, é puta. Quatro letras que, quando unidas, se aproximam do objetivo pelo qual Gabi sempre lutou: domar o estigma”.
Foi justamente toda essa força que capturou a atriz Fernanda Viacava: “O desafio de fazer uma personagem real, ser o motor, pesquisar, instigar, seduzir as pessoas para contar a história dessa puta mulher. Um encontro que mudou meu jeito de olhar e me colocar na vida, a partir da leitura da autobiografia da Gabriela, “Filha, mãe, avó e puta”.
Quem foi Gabriela Leite?
“Se a gente não toma a palavra
pelo chifre e assume elas,
a gente não muda nada” (Gabriela Leite)
Nascida em 1951, em São Paulo, Gabriela se tornou a principal referência na luta em defesa dos direitos das prostitutas no Brasil. Estudante da USP e frequentadora do Bar Redondo com a turma da contracultura nos anos 70, ela trocou a faculdade de sociologia pela prostituição – primeiro em sua cidade, depois em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro.
Gabriela foi a primeira mulher a se apresentar publicamente como prostituta. Isso aconteceu no I Encontro de Mulheres de Favelas e Periferia, organizado em 1983 pela vereadora Benedita da Silva, do PT. “Foi um rebu! Uma prostituta que se diz prostituta! Aí começou toda uma onda”, disse a ativista em sua autobiografia.
Em 1984, Gabriela conhece Lourdes Barreto em um encontro da Pastoral da Mulher Marginalizada em Salvador, e no final de 1985 elas voltam a se encontrar em Jundiaí.
A partir daí, tramam juntas a organização do movimento brasileiro de prostitutas, o I Encontro Nacional de Prostitutas “Mulher da vida, é preciso falar” realizado no Rio de Janeiro, no ano de 1987. Em 1992, cria a ONG Davida e em 2005 a grife Daspu, uma passarela de luta concebida para dialogar com a sociedade os estigmas relacionados às prostitutas.
Gabriela foi a primeira mulher na América Latina a iniciar o trabalho de organização da categoria, a partir da desconstrução de representações socialmente aceitas sobre a prostituição, dando novos sentidos ao estigma que atravessa todas as mulheres, além da luta política do reconhecimento da prostituição como trabalho.
Entre o individual e o coletivo
Mesmo se tratando de um monólogo, mais de 14 mulheres, entre criadoras e executoras, se debruçaram na tarefa de contar essa história.
A história é individual, mas ressoa no coletivo.
Para contar essa história, o espetáculo trabalhou com arquivos sonoros e audiovisuais do acervo histórico Davida – Prostituição, Direitos Civis, Saúde (criada em 1992), que desde 2012 integram o Arquivo Estadual do Rio de Janeiro – APERJ.
Quando nos deparamos com Gabriela Leite e sua vida e obra, a pergunta “O que é ser mulher?” se reatualiza. Esta mesma pergunta foi feita por Marielle Franco, em seu último discurso, no Dia da Mulher, em 8 de março de 2018: “O que é ser mulher? O que cada uma de nós já deixou de fazer ou fez com algum nível de dificuldade pela identidade de gênero, pelo fato de ser mulher? A pergunta não é retórica, ela é objetiva, é para refletirmos no dia a dia, no passo a passo de todas as mulheres”.
Gabriela, nasceu Otília, mulher hábil no uso das palavras que cortam na carne, banhada pela linguagem que habita o corpo, e que fez do significante PUTA, sua nomeação. Uma mulher que fez sua escolha causada pelo desejo.
E como diria a nossa eterna Rita Lee em Pagu:
Eu sou pau para toda obra
Deus dá asas a minha cobra
Minha força não é bruta
Não sou freira, nem sou puta
Autobiografias:
Gabriela Leite
Eu, mulher da vida (1992) e Filha, mãe, avó e puta: a história de uma mulher que decidiu ser prostituta (2009)
Puta Autobiografia. Org. Elaine Bortolanza e Leila Barreto (2023)
Temporada: até 4 de fevereiro
Às sextas e aos sábados, às 20h30; e aos domingos, às 18h30
Sesc Avenida Paulista – Av. Paulista, 119, Bela Vista
Ingressos: R$ 40 (inteira), R$ 20 (meia-entrada) e R$ 12 (credencial plena)
Patrizia Corsetto é jornalista, radialista e psicanalista e
assina a coluna de cultura semanalmente